A quantidade de veículos elétricos vendidos no Brasil tem crescido exponencialmente nos últimos anos. De acordo com um levantamento realizado pela Associação Brasileira de Veículos Elétricos (ABVE), “as vendas de veículos eletrificados leves cresceram 78% no primeiro quadrimestre de 2022, na comparação com o mesmo período do ano passado (…)”, tendo sido contabilizados, apenas no primeiro quadrimestre de 2022, o número de 12.976 unidades comercializadas.
Um dos grandes motivos para o aumento das vendas de veículos elétricos é a busca por uma solução ambientalmente amigável. Isso porque o Brasil assinou diversos compromissos internacionais para adotar medidas de combate ao efeito estufa e ao aquecimento global. Como exemplo, na 26ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP 26), “o governo federal anunciou a meta de reduzir as emissões de carbono em 50%, até 2030”. O aumento dos preços de combustíveis também é um motivo para o crescimento das vendas.
Como consequência do crescimento da quantidade de carros elétricos no país, o número de postos com a atividade de recarga de veículos elétricos também aumentou consideravelmente. Apenas em 2021, de acordo com levantamento da ABVE, “o total de eletropostos públicos e semipúblicos no Brasil saltou de cerca de 500 pontos em março de 2021 para 754 em julho, dos quais 735 em operação”.
Nesse cenário de desenvolvimento da eletromobilidade no país, surgiu a necessidade de se regulamentar as atividades de recarga dos veículos elétricos, motivo pelo qual, em 2017, a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) abriu a Audiência Pública nº 29/2017 em busca de subsídios para a referida regulamentação.
Importante mencionar que, à época, a Aneel emitiu a Nota Técnica nº 0063/2018-SRD/Aneel dispondo, entre outras coisas, que “as atividades de recarga não se confundem com a comercialização, distribuição ou fornecimento de energia elétrica”, uma vez que, entre outros motivos, “os veículos elétricos se caracterizam como cargas móveis (e não como unidades consumidoras)”.
Em junho de 2018, foi publicada a Resolução Normativa Aneel nº 819/2018, estabelecendo os procedimentos e as condições para a realização de atividades de recarga de veículos elétricos, permitindo que qualquer interessado, tais como distribuidoras, postos de combustíveis, shopping centers e outros, realizassem serviços de recarga com fins comerciais[1].
A norma, no entanto, foi revogada com a aprovação da nova Resolução Normativa nº 1.000/2021, que consolida as regras de prestação do serviço público de distribuição de energia elétrica, inclusive prevendo regras sobre as instalações de recarga de veículos elétricos (arts. 550 e seguintes).
Do ponto de vista tributário, não há ainda uma definição exata dos tributos que devem incidir sobre os postos com atividades de recarga de carros elétricos. Isso porque, se de um lado há a possibilidade de se considerar o fornecimento da energia elétrica como uma circulação de mercadoria (ICMS), de outro pode-se considerar que a recarga se caracteriza como um serviço (ISS).
De acordo com o artigo 155, inciso II, da Constituição Federal[2], compete aos estados e ao Distrito Federal “a instituição de imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação” (ICMS). Nesse sentido, constitui fato gerador do ICMS o fornecimento de energia elétrica, considerando que esse insumo foi equiparado à mercadoria pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) no julgamento do REsp nº 38.344/PR.
Por outro lado, a Constituição estabeleceu aos municípios a competência tributária para instituir impostos sobre serviços de qualquer natureza (ISS), desde que previstos em lei complementar, à exceção daqueles compreendidos no seu art. 155, II, que seriam fatos geradores do ICMS.
Portanto, no caso dos eletropostos, a dúvida que surge é a seguinte: a atividade de recarga dos veículos elétricos é considerada fornecimento de mercadoria ou deve ser enquadrada como prestação de serviços?
Como já mencionado, a Aneel emitiu a Nota Técnica nº 0063/2018-SRD/ANEEL dispondo que a atividade de recarga deve ser considerada (serviço), dissociada e distinta da atividade de fornecimento de energia elétrica.
Basicamente, os fundamentos constantes da nota técnica para o enquadramento da recarga como um serviço distinto do fornecimento de energia elétrica foram: (i) “as condições que justificam a necessidade de regulação e controle sobre o serviço de distribuição de energia elétrica não estão presentes no serviço de recarga”: o serviço de recarga não é um monopólio natural (o usuário pode escolher tanto o prestador quanto o local da sua prestação) e tampouco se caracteriza como um serviço essencial, uma vez que existem substitutos para o carro elétrico; (ii) “os veículos elétricos se caracterizam como cargas móveis (e não como unidades consumidoras)”: A recarga do carro elétrico se assemelha à recarga de celulares e notebooks, não havendo como incluir o veículo no conceito de unidade consumidora; (iii) “o que é disponibilizado ao usuário do serviço de recarga é algo diferente do que é disponibilizado ao consumidor de energia elétrica”: além do insumo de energia elétrica, a recarga do veículo depende de uma infraestrutura própria e específica que servirá apenas para injetar a energia no veículo.
Com base nos argumentos acima expostos, seria possível afirmar que a recarga de veículos elétricos se caracteriza como prestação de serviço, atraindo a incidência do ISS, uma vez que o fornecimento de energia elétrica é insumo dessa atividade e não uma atividade em si, capaz de atrair a incidência do ICMS.
Não obstante, deve-se observar que as definições e argumentos apresentados pela Aneel na referida nota técnica são exclusivamente de cunho regulatório, ou seja, ao definir a recarga como serviço, a Aneel buscava apenas apresentar as características técnicas da atividade e não os seus efeitos tributários.
Ainda, é de se mencionar que o enquadramento da atividade de recarga como “serviço” consta apenas na nota técnica, não tendo sido replicada ou expressamente prevista nas resoluções da Aneel sobre o assunto, nem mesmo há, na legislação pátria, uma definição sobre essa atividade. Nesse sentido, a positivação no direito privado dos conceitos e definições constantes da nota técnica, promovendo a distinção entre o fornecimento de energia elétrica e o da prestação de serviço de recarga de veículos certamente contribuirá para dirimir os conflitos tributários[3].
Tampouco consta na Lista Anexa à LC nº 116/03 a atividade exclusiva de recarga de veículos elétricos, sendo que o item que mais se aproxima ao referido serviço seria o 14.01: “Lubrificação, limpeza, lustração, revisão, carga e recarga, conserto, restauração, blindagem, manutenção e conservação de máquinas, veículos, aparelhos, equipamentos, motores, elevadores ou de qualquer objeto (exceto peças e partes empregadas, que ficam sujeitas ao ICMS)”.
No entanto, com base no item acima, é possível que os estados entendam que a energia elétrica injetada se enquadra na exceção prevista (peças e partes empregadas) se sujeitando à incidência do ICMS.
Sobre essa perspectiva, a Consultoria Tributária do Estado de Minas Gerais, por meio da Solução de Consulta de Contribuinte nº 85 DE 22/04/2019, entendeu que o “fornecimento de material indispensável à carga e recarga de extintor de incêndio, tais como o pó químico, gás carbônico (CO₂), água (H₂O) e nitrogênio (N₂), é normalmente tributado pelo ICMS, com base na alínea ‘b’ do inciso II do art. 1º do RICMS/2002, visto que está caracterizada a ressalva contida no subitem 14.01 da Lista de serviços anexa à Lei Complementar no 116/2003”. No mesmo sentido à Solução de Consulta nº 19173/2019, de 11 de abril de 2019, do estado de São Paulo.
Assim, em que pese haver um indicador de que sobre a recarga elétrica deve haver a incidência do ISS, não há como se afirmar ao certo qual será a tributação sobre esse tipo de operação.
Diante desse cenário, uma possível solução para garantir segurança jurídica e esclarecer a natureza jurídica da operação para fins tributários, seria a definição, em lei, de que a recarga elétrica se caracteriza como “serviço” distinguindo-a do fornecimento de energia elétrica e a alteração da Lista Anexa à Lei Complementar 116/2003[4] para inclusão de um subitem específico para enquadramento da atividade de recarga de veículos elétricos com a definição do local de pagamento do imposto.
Ainda, para atender as necessidades do mercado e agilizar a transição para o modelo de veículo elétrico, deve-se avaliar também a concessão de incentivo fiscal para estimular a produção, infraestrutura e o uso de carros elétricos, inclusive redução da alíquota de IPVA de veículos elétricos.
Assim, espera-se que este texto possa estimular o debate sobre a adequada tributação dos eletropostos, bem como sobre as políticas de incentivo ao setor.
[1] Resolução nº. 819/2018 – “Art. 1º Estabelecer os procedimentos e as condições para a realização de atividades de recarga de veículos elétricos por concessionárias e permissionárias de serviço público de distribuição de energia elétrica, doravante denominadas distribuidoras, e demais interessados”.
[2] Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:
II – operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior; (…)
[3] A distinção entre os serviços de telecomunicações daqueles que acrescentam utilidades, nos termos da Lei nº 9.472/97, que dispõe sobre a organização dos serviços de telecomunicações, foi importante para delimitar a incidência do ICMS apenas para os serviços de telecomunicações conforme definido a legislação. (STJ, Tema Repetitivo 427).
[4] Art. 1o O Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, de competência dos Municípios e do Distrito Federal, tem como fato gerador a prestação de serviços constantes da lista anexa, ainda que esses não se constituam como atividade preponderante do prestador. (…) § 2o Ressalvadas as exceções expressas na lista anexa, os serviços nela mencionados não ficam sujeitos ao Imposto Sobre Operações Relativas à Circulação de Mercadorias e Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação – ICMS, ainda que sua prestação envolva fornecimento de mercadorias.
Fonte: Jota
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